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Ensaio Sobre o Voo

Eu cresci à sombra de uma projeção de infância muito pontual. Desde os três anos de idade, eu quis ser astronauta. O ilimitado céu me admirava… mas também me espantava. E foi por isso que, aos sete, eu desisti de ser astronauta.

 

Mais tarde, percebi que, felizmente, a minha capacidade de voar não se limitava ao conceito literal da palavra. Eis que, durante a minha pré-adolescência, o divórcio dos meus pais fez a ponte aérea Rio–São Paulo se tornar via de regra. Duas vezes por mês, eu estava lá, de fato perfurando as nuvens e invejando os pássaros, que podiam fazer aquilo sem uma armadura gigantesca de metal ao seu redor. 

 

Logo depois, o meu voo pessoal se mostrou diretamente relacionado à minha escrita. Descobrindo-me uma nata escritora, permiti que o eu artístico aflorasse naquela fase de maturação juvenil, e eu conheci os planetas do sistema solar e as mais distantes galáxias mediante ao que as pontas das minhas canetas Bic puderam me levar.

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Mas crescer fez com que a frequência dos voos diminuísse cada vez mais, parte porque a vida se mostrou muito contrária ao que eu me permitia fantasiar que ela fosse, parte pela falta de tempo que a madureza agregava aos meus dias. E, em algum momento, eu caí... Ralei o joelho, contive as lágrimas e engoli o ardor quente que subiu-me pela garganta. De pronto, pus-me novamente de pé, mas eu já não tinha asas, apenas cicatrizes. Algo as havia arrancado. Caminhei, portanto, sempre o mais estável que pude – e era difícil me equilibrar com apenas um par de braços!

 

Demorei para me permitir voar de novo. Nesse meio tempo, eu fiz crescer, dentro de mim, um medo doentio de altura. Eu passei a odiar janelas de vidro. Eu evitava sacadas.

 

Para minha surpresa, eu voei novamente algumas semanas antes de a pandemia ser uma realidade para um país de Terceiro Mundo como o Brasil. E, desde então, trancafiada dentre as paredes de minhas moradas, a vontade de repetir a experiência tem me perseguindo, aparecendo como um formigamento quase adormecido que percorre a extensão de meus braços até a ponta dos dedos pelo menos uma vez por semana. Mas eu o massageio e digo que aguarde um pouco mais – já são cem dias e contando: as minhas novas asas que se segurem, porque é impossível voar dentro de casa sem quebrar o vaso de orquídea da minha mãe no processo.

 

O cenário era este: quase oito horas da noite, detrás do volante da Pajero TR4 que por vezes eu pegava emprestado, com ninguém menos que a minha namorada no banco do copiloto. Saíamos da USP, que àquela noite estava estranhamente vazia, e eu me sentia, de verdade, uma pilota. As caixas de som traseiras pareciam prestes a estourar, dividindo o efeito sonoro do ronco do motor com a discografia completa de RÜFUS DU SOL. As janelas entreabertas traziam uma brisa fresca que bruxuleavam nossos cabelos tornaram aquele momento uma cena de filme.

 

Os pneus do carro deslizavam pelo asfalto por prolongados minutos mesmo após irrompermos pelo Portão 1.  Nós, em silêncio, apreciávamos felizes a companhia uma da outra, e deixávamos que a música eletrônica ditasse a nossa paz de espírito compartilhada. São Paulo à noite, ademais da poluição imperceptível, é uma cidade linda.

 

Nalgum momento muito próximo da esquina de minha casa, a trilha sonora que nos ligava a diversas dimensões paralelas foi interrompida pela entrada aleatória de uma de minhas playlists. Então, Je Vole, uma composição do eternizado Michel Sardou, cuja versão era interpretada pela cantora francesa Louane no seu filme de estréia, A Família Belier, se pôs aos nossos ouvidos.

 

Aquela canção nos fez voltar aos nossos corpos, mas nos tirou, de fato, do chão. E, quase que tomadas por uma necessidade intrínseca de protagonizar a cena, tive que remover uma das mãos do volante para fazer um pássaro em mímica palmar em conjunto a ela: o seu polegar cruzado ao meu, e ambos os nossos quartetos de dedos esticados em direções opostas, fomentando as asas da ave que éramos, juntas.

Foto: Laura Toyama

Eu voei. Nós voamos.

 

Desde aquele dia, voar de madrugada frente à tela de meu computador, por mais que culminada pelo isolamento carcereiro promulgado pelo Covid, voltou a se tornar uma possibilidade.

 

É bizarro como pequenos acontecimentos nos mudam sem a possibilidade de retorno. Como olhar para um céu estrelado, aos meus sete anos, me deixou aterrorizada com a imensitude do universo e me fez desistir do meu sonho mais puro de ver tudo e todos lá de cima. Como perder o meu irmão me fez ter um medo irracional de altura. Como dirigir na cidade grande, numa noite sem trânsitos, com a companhia perfeita e música ideal, me fez criar asas novamente.

 

Voar vale a pena. Eu gostaria que todo mundo pudesse se dar uma chance de ser modelado por pequenos acontecimentos e tivesse a oportunidade de voar como eu voo. E talvez pudessem – se ao menos não estivessem todos cercados por paredes por todos os lados…

Iana Maciel

Uma (Breve) Ode Aos Meus Pés em Desuso

Afundo os pés descalços na areia. Alívio. Após um pedalar tardio ao redor da Lagoa, nada como desfazer-me dos tênis e das meias úmidas de suor para desfrutar dos pequeninos grãos massageando meus dedos cansados ao que eu flexiono e relaxo os músculos intrínsecos do metatarso. E, com essa maravilhosa sensação da dor provinda do desgaste físico se esvaindo, tomo um momento para avaliar meus calcantes tão surrados.

Praia de Copacabana, posto 8; quarta-feira, fim da tarde. Nenhuma criança fazendo seus castelos, nenhum jogador de futevôlei, nenhum vendedor de empada. Nenhuma vivalma; só meus pés, um mar de areia e uns grãos de ondas quebrando à enseada.

 

Se há um órgão a qual devemos alguma atenção especial, está claro que são os pés. Pé grande, pequeno, pé branco, pé preto, amarelo, vermelho, pé fedido, pé descalço – não importa: o pé é o pé.

 

O pé é o órgão responsável pela base de nossa sustentação e ações motoras, e a evolução da espécie humana nos permitiu necessitar de apenas dois, diferentemente da maioria dos vertebrados, graças ao surgimento do Homo erectus. Diretamente ligados às pernas, os pés são importantes forças motrizes desde os primórdios, porque, em conjunto com os membros superiores, cuidavam do transporte de artigos e do funcionamento de máquinas, produzindo energia. E o odor é um pequeno e insignificante comportamento de reação para toda essa responsabilidade.

 

Em meio à pandemia do Covid-19, a memória de meus pés me trouxe até aqui. Não estou mais no quarto, no apartamento de trinta e oito metros que se fundamenta a minha morada paulista. Estou em casa. Verdadeiramente.

 

Envergo os joelhos e contraio o abdômen, estendendo as mãos para trás até tatear o solo e me sentar sem perigo de perder o equilíbrio, de frente para o mar. Remexo os tornozelos e mergulho os peitos dos pés na sílica seguidas vezes, desfrutando do prazer da liberdade dos artelhos. Uma onda quebra com proximidade da orla, e a água avança até lamber a ponta de meus dedos, que logo são anestesiados pela temperatura gelada. Eles merecem um pouco disso, afinal, estão há três meses percorrendo pouco menos de duzentos passos por dia – se muito.

 

E eu observo, ao horizonte, o espetáculo de raios solares desaparecerendo dentre as nuvens, a consciência imersa na beleza da paisagem e na ode que componho à importância de meus pés. Apolo sorrindo para seu descanso, e meus pés, mais uma vez, se preparando para uma seguinte temporada de aguardares.

Iana Maciel

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Só Sei Dançar Com Você

A primeira vez foi quando você e eu nos beijamos: estávamos no Niver i Breja, uma confraternização tranquila na noite de um sábado, na Vivência. Mais do que ensaiar pra beijar, a gente ensaiava mesmo é a tão prometida dança. Você, uma apreciadora incurável dessa arte; eu, que não sabia nada, e que só queria te impressionar. 

 

O álcool já havia abaixado. Aconteceu bem depois do enlace das nossas línguas – a dança delas não me sugeriu defeito algum; em verdade, eu estava extasiada. Ainda assim, a trova de nossos pés foi um emaranhar tímido e descompassado que serviu só para aliviar a tensão. Digna de uma primeira vez.

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Você assumiu o controle do som e colocou o Xote da Alegria. Disse-me que daquela eu não podia escapar. E eu nem queria escapar, mas fingi que sim. Eu sou doce.

 

Pois então estávamos lá, sem entender aquela tal alegria. E ríamos à toa. E, ainda que eu persistisse muito pra acompanhar seus passos, percebi que aquele xote fez milagres. Eu não sabia dançar, mas você não se importou. Guiou-me. E foi tão bonito ver a gente ir à vida... Você não disse, mas eu percebi, ali, que se você fosse forte o suficiente para sustentar os meus singelos cinquenta e cinco quilos, você deixaria eu pisar nos seus pés e dançaria por nós duas.

 

A segunda vez foi por iniciativa minha. Mesmo cenário, mas na tarde do Festival Prainha Fica. Estava calor, era fim de semestre. Desde cedo ameaçava chover, mas o sol lutava para se manter visível por entre as nuvens.

 

Pouco antes da oficina de forró que você mesma organizava, veio a fatídica chuva. Os ambulantes correram para debaixo do teto da Vivência, as demais pessoas se espremeram no coberto, atravancando a fila e a passagem para a lanchonete da Dona Monyca. Era uma chuva curta, só veio para dar um sustinho. Logo vai passar, eu disse. Não crendo, você própria se assustou – vai atacar minha rinite, respondeu.

 

Mas eu insisti, não tinha como evitar: bem quando a garoa apertava e as pessoas resmungavam num uníssono de desconforto às portas do CALC, a caixa de som da entidade gritou um "ai, ai, ai, ai" eletrônico contagiante.

 

E fomos nós para fora, para debaixo do holofote úmido do céu, rodar uma ciranda bastante equilibrada sobre uns pneus velhos bem no meio da Prainha. Eu não disse, mas você soube, aí, que eu não deixaria você cair – naquele momento ou em momento algum.

 

Vanessa Da Mata estava certa, afinal. Tomamos um belo banho de chuva.

 

Quem passava, enxergava tudo: a minha chapinha derretia com os respingos brutos da tempestade de verão, e você se derretia… Por mim.

 

A terceira, a quarta, a quinta vez foram na sala do meu apartamento. A música tocava diretamente da televisão, plugada pelo aplicativo do YouTube. A chuva a gente só poderia ver da janela, e qualquer ambiente alto astral e povoado como a Vivência da ECA estava separado por alguns quilômetros de potencial contaminação pelo vírus. Mas tudo bem, não nos importávamos com nada daquilo naqueles pontuais momentos.

 

Em meio à rotina do dia-a-dia universitário ou em meio à apatia do fim do mundo, ainda bem que a gente tinha a nossa dança.  Eu nunca soube dançar; já você dançava de um jeitinho estranho, mas único. No entanto, enquanto esses abraçares animados estivessem presentes, estaríamos bem.

(É clichê, mas é a verdade!)

Mal posso esperar para que dancemos qualquer farofa pop nas baladas de São Paulo. Para que eu possa te convidar oficialmente para dançar uma quadrilha em algum arraial do ano que virá. Agora que encaixamos, vai ser difícil interromper esse ritual tão nosso.

 

Já perdi a conta de quantas vezes dançamos na quarentena. Diferentemente de muitos casais, estamos conseguindo fazer isso em carne e osso. Sorte a nossa.

 

Aliás, sorte a minha, porque eu não sei dançar. Se dependesse de mim, esses quase cem dias dentro de casa seriam reservados apenas a cantarolar enfadada a qualquer canção triste. Eu só sei dançar com você.

Iana Maciel

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